A fronteira entre os transgênicos e a segurança alimentar
Roseli Ribeiro em 27 May, 2012
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Países exportadores de produtos agrícolas produzidos com sementes geneticamente modificadas, como EUA, Argentina e Canadá buscam no mercado internacional flexibilizar a regulação internacional que proíbe o uso desse material. Por outro lado, os países importadores argumentam que precisam proteger a saúde de seus cidadãos e o meio ambiente e tentam barrar a entrada e comercialização desses produtos. A avaliação é feita por Fernanda Barreto Campello Walter, advogada responsável pelo departamento de Meio Ambiente do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.
Fernanda Barreto, mestre em Direito Internacional do Ambiente, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, defendeu sua tese de mestrado abordando o tema da expansão e reflexos da produção de produtos transgênicos no meio ambiente.
Segundo a especialista, no Brasil desde 2003 é obrigatória, tanto nos produtos embalados, como nos vendidos a granel ou in natura, a aposição do símbolo do triângulo amarelo que indica tratar-se de um produto transgênico. Esse triângulo deve ser impresso tanto nas embalagens, quanto nos recipientes em que estão contidos os produtos.
“O que tem acontecido na prática é o descumprimento reiterado das regras de rotulagem referentes a esses produtos, basta olhar as prateleiras dos supermercados” alerta a advogada. Aquele consumidor que não quer adquirir produto modificado tem procurado as mercadorias que indiquem no rótulo ser “livre de OGM” ou que contenham a indicação de se tratar de “produto orgânico”.
O Brasil atualmente é o segundo maior produtor de produtos transgênicos no mundo considerando o cultivo da soja, milho e algodão. Aqui também os produtores rurais buscam flexibilizar as regras em torno do controle desse material modificado geneticamente. Um exemplo é o projeto de lei que tramita no Senado Federal de iniciativa da senadora Kátia Abreu que pretende abolir a rotulagem nos alimentos e ingredientes alimentares produzidos a partir de animais alimentados com ração transgênica.
Observatório Eco: O Brasil é atualmente o segundo maior país na produção mundial de transgênicos, enquanto outros buscam banir a entrada desse material. Qual a sua avaliação sobre essa situação?
Fernanda Barreto: Sim, o Brasil está atrás apenas dos EUA, país conhecido por defender nas instâncias internacionais o tratamento dos OGMs como equivalentes a qualquer outro produto convencional.
No Brasil, apenas para citar alguns números, divulgados a pouco pela imprensa, as culturas transgênicas serão expandidas em 20,9% na atual colheita (2011-2012). Recente análise da empresa de consultoria Céleres aponta que 85,3% das plantações de soja do país será cultivada em 2012 com variedades de sementes transgênicas.
Fora a soja, que é o principal cultivo do Brasil e o produto agrícola mais exportado, plantamos e exportamos em grandes quantidades, algodão e milho.
Basicamente, diante das incertezas das técnicas de modificação genética e dos riscos ambientais, os países se dividem em dois grupos: de um lado, o modelo ecoliberal, utilizado pelos EUA, que nega o interesse ambiental na questão dos OGM e, do outro, o modelo de controle público rigoroso e prévio, adotado pela União Europeia. Importante mencionar que há ainda países que não se enquadram em nenhum dos modelos citados por se encontrarem em uma primeira fase de avaliação de riscos da biotecnologia, simplesmente não contando com um sistema de regulação da atividade.
A regulamentação absenteísta dos EUA, primeiro país a liberar e comercializar os OGMs no mundo, tem seus fundamentos no princípio da equivalência substancial ou similaridade, formulado pela OCDE, em 1993, e utilizado como parâmetro tanto pela FAO quanto pela OMS. De acordo com tal princípio, os riscos dos produtos derivados do OGM devem ser equivalentes aos dos produtos tradicionais já disseminados no mercado, observando-se para a avaliação os mesmos métodos já adotados para investigar os produtos convencionais.
Não se pode deixar de mencionar que o confronto entre os dois modelos citados não se limita à forma de regulamentação, mas estende-se a uma intensa disputa comercial. Em 2006, no âmbto da OMC, a União Europeia foi derrotada pelos EUA, pela Argentina e pelo Canadá, países eminentemente exportadores, em uma importante disputa, que ficou conhecida por “Produtos Biotecnológicos”.
Recentemente o Jornal britânico “The Guardian” divulgou que em 2007, no auge da polêmica sobre os transgênicos, a embaixada americana em Paris advertiu Washington a iniciar uma dura guerra comercial, em resposta à determinação da França em proibir a comercialização de milho transgênico. Outro exemplo desse embate divulgado por um jornal português é que a embaixada americana em Lisboa já enviou carta de repúdio a intenção do governo regional dos Açores de proibir a entrada de produtos geneticamente modificados no arquipélago.
Basicamente, os países exportadores das commodities buscam flexibilizar a regulação internacional, enquanto que os importadores argumentam que precisam proteger a saúde de seus cidadãos e o meio ambiente.
Observatório Eco: Os estudos confirmam efetivamente o perigo para a saúde humana e animal dos produtos OGMs?
Fernanda Barreto: De acordo com o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, deve-se entender por OGM qualquer organismo que tenha uma combinação de material genético inédita, obtida por meio do uso da biotecnologia moderna. No mesmo sentido dispõem o Codex Alimentarius e a Diretiva nº 2001/18 da União Europeia, para a qual transgênico é “qualquer organismo, com exceção do ser humano, cujo material genético tenha sido modificado de uma forma que não ocorre naturalmente por meio de cruzamentos e/ou de recombinação natural”.
Essas alterações no código genético dos produtos são realizadas visando alguma vantagem para o homem, como por exemplo, a produção de tomates mais resistentes para o transporte, arroz enriquecido com vitamina A, milho resistente a pragas e soja tolerante à herbicida.
Ocorre que há cientistas que apontam para efeitos adversos dessas alterações genéticas. Existiriam, portanto, malefícios à saúde pública e ao meio ambiente. No tocante ao meio ambiente, os malefícios teriam sido observados à biodiversidade do planeta. Minha pesquisa de mestrado se limitou a análise dos riscos já detectados ao meio ambiente. Estudos já apontaram, por exemplo, o impacto em espécies e microrganismos benéficos ao ecossistema, fluxo de genes ou contaminação dos plantios convencionais, geração de super pragas e transferência horizontal de genes.
Por outro lado, existem estudos apresentados pelas empresas de biotecnologia que negam a existência desses riscos. Na realidade, tratando-se de OGM, as avaliações de riscos tendem a não ser exatas, o que é típico dos processos decorrentes da biotecnologia moderna, pela própria natureza das modificações. Muitos dos efeitos só poderão ser conhecidos daqui a algumas décadas, daí a importância da aplicação do princípio da precaução e da avaliação e acompanhamento constantes, durante o processo de liberação comercial dos produtos.
Observatório Eco: Internacionalmente, existe um avanço muito forte das empresas produtoras de sementes transgênicas, que ganha proporções de monopólio, como esse avanço é avaliado?
Fernanda Barreto: Sim, há um crescimento bastante significativo das empresas de biotecnologia no mundo. A grande preocupação dos adversários dos transgênicos é a contaminação dos plantios tradicionais, de modo que se chegue a uma situação de inexistência de sementes convencionais ou puras. Judicialmente, essa preocupação já foi retratada em duas conhecidas demandas, ambas no Canadá.
Em 2001, em caso que se tornou paradigma no debate relativo aos OGM, um fazendeiro canadense entrou em disputa judicial com a Monsanto quando descobriu canola Roundup Ready em sua plantação, sem nunca tê-la plantado. A Monsanto processou o fazendeiro por quebra de patente, enquanto este alegava que sua plantação tinha sido contaminada pela canola modificada em decorrência de polinização cruzada em virtude do vento, de insetos ou de sementes trazidas por tratores e outros equipamentos. Caso mais recente é Hoffman vs Monsanto Canadá Inc., de 2005. Nesse caso, fazendeiros de plantas orgânicas procuraram reparação por danos causados por variedades de canola geneticamente modificadas da Monsanto e Bayer. A alegação principal dos fazendeiros era a de que a disseminação voluntária das variedades de canola modificadas resultou na propagação dessas plantas e de seus genes de uma forma que tornou impossível a plantação naquele país de canola orgânica.
Frise-se que, se por um lado, há o grande crescimento dos cultivos de lavouras transgênicas, por outro, os consumidores estão, a cada dia, mais interessados em produtos orgânicos, hidropônicos, sem utilização de agrotóxicos e naqueles produtos dos quais se conhece a procedência. Acredito que já que estamos em um terreno de incertezas científicas, deve-se preservar o acesso à informação e a possibilidade de escolha do consumidor, isso se dá através de rotulagem clara e precisa.
Observatório Eco: Em outubro, a CTNBio aprovou uma resolução de Monitoramento Pós-Liberação Comercial de organismos geneticamente modificados. O novo sistema permite a definição de prazos diferenciados para o acompanhamento de produtos liberados comercialmente pela comissão. Por favor, explique o que significa essa nova medida.
Fernanda Barreto: A Resolução Normativa da CTNBio foi publicada em 2 de dezembro de 2011, tendo entrado em vigor na mesma data. Com as novas regras, o acompanhamento dos riscos do produto liberado comercialmente, pode ocorrer basicamente de duas formas.
Se for detectado anteriormente apenas um risco negligenciável, ou seja, aquele associado a um dano reduzido e a uma probabilidade de ocorrência desprezível, o produto deverá ser submetido a um plano de monitoramento geral. Esse plano geral, que poderá conter relatórios de avaliação do uso, disponibilização de serviços de atendimento ao consumidor (SAC) e sistemas oficiais de notificação, deverá ser entregue a CTNBio no prazo de 30 dias, após a publicação do deferimento do pedido de liberação comercial. A duração do monitoramento geral, bem como a freqüência dos relatórios a serem encaminhados à Comissão são estabelecidas pelo próprio requerente, e, posteriormente, aprovadas ou não pela CTNBio, caso a caso.
A novidade da nova regra é que, nesses casos (riscos considerados negligenciáveis pela Comissão), a empresa produtora poderá requerer, fundamentadamente, uma isenção de monitoramento, a ser aprovado pela CTNBio.
Curiosamente, a Resolução não dispõe quais seriam as hipóteses ou critérios para concessão da isenção.
A segunda forma de monitoramento ocorre no caso de riscos não negligenciáveis, considerados aqueles associados a um dano com probabilidade concreta de ocorrência no tempo provável de uso do produto. Nesse caso, a empresa requerente deverá se submeter, além das condições impostas no plano geral, a um monitoramento caso-específico que é o acompanhamento de uma condição de risco individualizada, já identificada na avaliação de risco anterior ou constatada durante o monitoramento geral. Da mesma forma que no plano geral, esse plano específico terá duração variável, a ser proposta pelo requerente e definida pela CTNBio.
Um ponto importante a ser frisado é o fato de que as empresas que já tinham produtos liberados antes da vigência da Resolução puderam optar, até fevereiro deste ano, em manter o plano anterior ou migrar para as novas condições.
Observatório Eco: Qual o impacto dessa resolução? Ela gera insegurança com relação ao consumo desses produtos?
Fernanda Barreto: A meu ver, haverá insegurança, se houver falha na fiscalização das condições de monitoramento. Quanto a este aspecto, a Resolução estabelece no artigo 9º que a CTNBio será responsável pelo envio do plano de monitoramento pós-liberação comercial aos órgãos e entidades de registro e fiscalização para conhecimento e adoção das providências a seu encargo.
Caso essa providencia não seja adotada ou caso as entidades responsáveis pela fiscalização sejam omissas, os consumidores e o meio ambiente dependerão da boa-fé das empresas em cumprir com a obrigação de comunicar à CTNBio a ocorrência de algum efeito adverso durante o monitoramento.
Observatório Eco: Há no Senado Federal uma proposta da senadora Kátia Abreu que pretende retirar das embalagens a informação de que o produto contenha ou é produzido a partir de organismos geneticamente modificados. Isso não seria uma medida preocupante?
Fernanda Barreto: É um projeto de Decreto Legislativo que tramita desde 2007. Deve ser ressaltado que se pretende apenas sustar a aplicação do artigo 3º do Decreto nº 4.680/2003. Este Decreto regulamenta o direito à informação, assegurado pelo Código de Defesa do Consumidor, quanto aos alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGMs.
O que poucas pessoas sabem é que, desde 2003, com a edição da Portaria de nº 2.658, é obrigatória, tanto nos produtos embalados, como nos vendidos a granel ou in natura, a aposição do símbolo do triângulo amarelo que indica tratar-se de um produto transgênico. Esse triângulo deve ser impresso tanto nas embalagens, quanto nos recipientes em que estão contidos os produtos.
O projeto da Senadora, que foi rejeitado em setembro de 2011 pela Comissão de Meio Ambiente e Defesa do Consumidor, pretende abolir essa necessidade de rotulagem nos alimentos e ingredientes alimentares produzidos a partir de animais alimentados com ração transgênica.
O que tem acontecido na prática é o descumprimento reiterado das regras de rotulagem referentes a esses produtos, basta olhar as prateleiras dos supermercados. O que o consumidor que não quer adquirir produto modificado tem feito é procurar aquelas mercadorias que indiquem no rótulo ser “livre de OGM” ou que contenham a indicação de se tratar de “produto orgânico”.