Temas ligados à biodiversidade ganharão mais destaque
Roseli Ribeiro em 24 April, 2011
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Biotecnologia, biossegurança e biodiversidade são alguns dos temas que irão ganhar mais espaço na agenda do direito ambiental nos próximos anos.
Em entrevista ao Observatório Eco, Adriana Diaféria, advogada, doutora e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) conta que a discussão internacional em busca de um marco global para a conservação e uso sustentável da biodiversidade planetária, “impôs” uma nova compreensão do direito ambiental em sua interface com os direitos econômico, social e cultural.
Adriana Diaféria é gerente jurídica da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. Já atuou no Departamento de Economia da Saúde, na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos no Ministério da Saúde, foi representante do Ministério na CTNBio e no CGEN. Coordenou a Área de Biotecnologia, Fármacos e Medicamentos da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, tendo contribuído para a construção da Política de Desenvolvimento da Biotecnologia, Decreto nº 6.041/2007. Foi consultora pela Unesco no Ministério da Saúde, atuando, em especial, nos temas relacionados ao acesso e uso do genoma humano e biotecnologia.
Para a especialista, o Brasil irá retomar as discussões sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação.
Adriana Diaféria também é professora de direito ambiental no Curso de Pós-Graduação Latu Sensu da PUC/SP e da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas).
Observatório Eco: A Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, deve ser discutida neste governo. Quais os aspectos mais atrasados desta medida provisória em sua opinião e por quê? O que uma nova lei deveria focar especificamente sobre o tema?
Adriana Diaféria: Realmente a discussão deste tema precisa ser retomada no Brasil. Esta Medida Provisória regulamenta dispositivos da Convenção sobre Diversidade Biológica e dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização.
A Convenção da Diversidade Biológica – CDB foi um dos resultados da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – a ECO-92 – realizada no Rio de Janeiro em 1992, estabelecendo um conjunto de ações compensatórias pelo uso da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais a ela associados, utilizando-se dos direitos de propriedade como uma das principais ferramentas para garantir a contrapartida de conservação e uso sustentável da biodiversidade.
A CDB foi internalizada efetivamente no Brasil pelo Decreto 2.519, de 16.03.1998 e, posteriormente regulamentada pela Medida Provisória mencionada (que teve uma edição anterior, de 2000), todavia com uma série de deficiências conceituais que tem impedido uma gestão adequada do uso sustentável da biodiversidade brasileira, acarretando, provavelmente, conseqüências irreversíveis, tanto para a conservação da biodiversidade – em razão da biopirataria não sofrer controles eficientes –, quanto para o desenvolvimento econômico da indústria brasileira, que a partir de um acesso adequado e em parceria com instituições de pesquisa poderiam ter alcançado um número significativo de resultados, seja na forma de produtos ou processos, em benefício a toda sociedade brasileira. Estes exatamente dez anos perdidos não voltarão mais.
O fato é que com a discussão internacional acerca da necessidade de um marco global para a conservação e uso sustentável da biodiversidade planetária, a CDB impôs uma nova compreensão do direito ambiental em sua interface com os direitos econômico, social e cultural, preconizando a idéia de desenvolvimento sustentável como um novo paradigma econômico do planeta e estabelecendo um novo princípio jurídico das relações jurídicas internacionais. Não que esta medida tenha objetivado subsumir os interesses de conservação do meio ambiente e da biodiversidade às estratégias de desenvolvimento econômico, mas, ao contrário, que as estratégias de desenvolvimento deveriam considerar o meio ambiente e a riqueza contida na biodiversidade como elementos fundamentais para a construção sustentável das próximas gerações e das sociedades futuras. Somado a isso, o conhecimento tradicional associado a esta biodiversidade, que é riqueza fundamental da diversidade cultural brasileira pode, sobremaneira, contribuir com a geração dos produtos e processos e também são merecedores de reconhecimento e de contrapartidas, de forma que sua valorização e práticas tenham perenidade até as futuras gerações.
Partindo desta ótica, a revisão da Medida Provisória deverá estabelecer estratégias diferenciadas para propiciar um ambiente estimulador da solidariedade entre as nações, estabelecendo mecanismos jurídicos que permitam a utilização dos recursos biológicos de forma economicamente fruível, preservando, reconhecendo e valorizando os conhecimentos tradicionais associados e, ao mesmo tempo, se beneficiando dos resultados desses usos para promover a proteção, conservação e disseminação da diversidade biológica, somada a capacitação na liderança de novos mercados, a partir desta realidade.
A tarefa de revisão da Medida Provisória não é fácil, ainda mais se considerarmos que desde 2008 o Brasil internalizou um novo Tratado Internacional, referente aos Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura – TIRFAA, que tem por objetivo facilitar o acesso do país ao intercâmbio de recursos genéticos com outros países para a realização das pesquisas agrícolas e que estabelece uma série de diretrizes que se inter-relacionam diretamente com a CDB.
A harmonização das premissas de ambos os textos internacionais – CDB e TIRFAA – será fundamental para a regulamentação do acesso a biodiversidade no Brasil, o que também poderá permitir o tratamento adequado da proteção dos conhecimentos tradicionais associados e dos direitos dos agricultores, da utilização sustentável dos componentes da biodiversidade, a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos, o acesso adequado as tecnologias e a cooperação técnica para o compartilhamento de resultados, etc.
A necessidade de revisão é urgente e esperamos que as autoridades competentes possam agilizar o tratamento do tema no Brasil, com os cuidados e atenção que merece ser tratado.
Observatório Eco: Vários estudos nacionais e internacionais divulgados na mídia afirmam que os produtos transgênicos representam um sério risco à saúde nas áreas da toxicologia, alergias, funções imunológicas, saúde reprodutiva, metabolismo, fisiologia e saúde genética. A senhora que é especialista no tema, poderia nos responder o que é mito e realidade quando o tema é alimento transgênico?
Adriana Diaféria: Alimentos transgênicos têm sido um dos grandes temas da pauta ambiental, não só em razão da preocupação quanto ao nível de interferência que o ser humano atingiu para mudança de seu meio, mas principalmente pela consequente ruptura de paradigmas que acarretou, impondo a necessidade de uma reflexão aprofundada e uma remodelação dos institutos jurídicos para abarcar as novas situações decorrentes desta nova realidade.
Os alimentos transgênicos são alimentos cujo embrião sofreu alterações genéticas, devido a mudanças nas menores estruturas moleculares do organismo vivo, o DNA, por meio de técnicas de engenharia genética, ou seja, técnicas que fazem com que um organismo vivo passe a conter materiais genéticos de outros organismos. A adoção dessas técnicas tem um objetivo fim que é a geração de novos produtos a serem introduzidos no mercado, quiçá global.
Nesse aspecto, o debate acerca da inserção destes alimentos no mercado já remonta há algumas décadas, fazendo com que o mundo hoje tenha países que rejeitam fortemente a entrada destes alimentos, como é o caso do Japão, e outros que aceitam sem maiores divergências, como é o caso dos Estados Unidos, países sul-americanos e asiáticos. Há ainda outras situações, como o caso da União Européia, que inicialmente se posicionou pela proibição e, mais recentemente e aos poucos, vem adotando medidas para autorizar a entrada de produtos transgênicos na região.
Apesar das tecnologias de engenharia genética não serem mais uma novidade, o fato é que a dinâmica dos mercados tem proporcionado um conjunto muito grande de informações que muitas vezes não dão a base suficiente para a compreensão de todas as dimensões desses avanços (de natureza técnica, científica, de biossegurança, sanitária, ambiental, social, econômica, etc..), o que acaba gerando dúvidas na população e, por conseqüência, dúvidas quanto à segurança dos alimentos.
Diversos são os estudos que demonstram a eficácia e segurança dos alimentos transgênicos e há outros que apontam diversos potenciais de riscos para os consumidores e também para o meio ambiente. O cerne da questão é que não há uma padronização metodológica – se isso for possível, considerada as especificidades de cada região do planeta – que permita aferir, sem contestações, os critérios de segurança e eficácia dos produtos e muitas vezes instituições governamentais e não governamentais apresentam divergência na interpretação dos dados, o que dificulta, sobremaneira, uma compreensão consistente acerca do tema.
Além disso, fatores econômicos também interferem significativamente nesta discussão, pois países que optaram por adotar modelos que não incorporam tecnologias como o eixo central de desenvolvimento, muitas vezes se opõem ao modelo de forte base tecnológica. Isso também acaba dificultando o acesso adequado a informações para permitir um consumo consciente.
Portanto, a questão que remanesce, em verdade, não é uma dicotomia entre o que é mito e o que é a realidade, pois grande parte dos conhecimentos científicos e tecnológicos conquistados ao longo das últimas décadas já nos demonstraram claramente a capacidade do ser humano de recriar sua própria realidade, mas sim o como devemos usufruir destes novos conhecimentos e de seus resultados, em face da dinâmica atual das relações econômicas e tecnológicas em todo o planeta, considerando não somente o nosso momento presente, mas principalmente o futuro de nossas gerações.
Observatório Eco: Há no STF (Supremo Tribunal Federal) uma ação que discute a constitucionalidade dos artigos que conferem competência exclusiva para a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) liberar OGM (organismo geneticamente modificado) em escala comercial e abrir mão do Estudo de Impacto Ambiental em algumas liberações. Em sua avaliação, o poder de uma comissão tem sido demasiado para lidar com um assunto tão delicado e complexo como esse?
Adriana Diaféria: Tratar de uma temática complexa como a prevista na Lei nº 11.105/05, no âmbito do Estado brasileiro, que necessite de manifestações ou ações diversificadas da Administração Pública, seja ela direta ou indireta, de forma a permitir que a sociedade brasileira tenha acesso a produtos resultantes da adoção das técnicas de engenharia genética, realmente exige uma dedicação e uma forte estrutura pública de apoio para garantir a segurança necessária a toda sociedade.
Hoje, o marco regulatório de biossegurança estabelece um regime jurídico especial em que há uma concentração de decisões na CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que deve estar conjugada com a implantação das recomendações destas decisões pelos órgãos de controle e fiscalização, os quais também possuem atribuições específicas, além desta, atuando em consonância com o CNB (Conselho Nacional de Biossegurança), tudo em conformidade com uma Política Nacional de Biossegurança, que deveria ser o programa público de orientação das ações para cumprimento da legislação.
O fato é que a CTNBio, de acordo com a referida Lei, é órgão integrante do MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia), no formato de instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, com o objetivo de “prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da PNB de OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente”, contando com uma Secretaria Executiva e apoio administrativo oferecido pelo MCT.
Com um rol extenso de atribuições a serem cumpridas, um volume significativo de processos que se acumulam para análise e uma composição de membros que devem dividir seu tempo de dedicação à CTNBio com outros de suas necessidades pessoais e de suas respectivas instituições/órgãos de origem, encontrando-se, apenas, nas reuniões deliberativas da CTNBio e de suas subcomissões, além da dificuldade de integração das instâncias governamentais para gestão dos atos e coordenação de ações, o que se tem, por consequência, é uma dificuldade significativa no cumprimento de todas as ações previstas no texto legal, surgindo, dessa forma questionamentos por parte da sociedade civil, conforme podemos acompanhar pela imprensa, internet e outros meios de comunicação.
Seria recomendável, se não houver decisão contrária a constitucionalidade da referida lei, que se criasse uma Autarquia Federal especialmente para tratar o tema, uma “Agência Nacional de Biossegurança”, de forma que se pudesse dar a institucionalidade devida, com recursos suficientes para se consolidar o Sistema Nacional de Biossegurança, integrando as ações dos Estados e Municípios (onde efetivamente as decisões técnicas são implantadas e devem ser fiscalizadas e monitoradas), estabelecendo as premissas de ação da Política Nacional de Biossegurança, os instrumentos de controle, fiscalização, capacitação e monitoramento, para que a atuação do Estado no cumprimento de sua missão de defesa do interesse público tenha perenidade e garantia de continuidade, com quadros próprios de funcionários especializados, a partir da experiência já acumulada pela CTNBio. O Conselho Nacional de Biossegurança continuaria a integrar o sistema, porém contando com um braço operacional, salvo melhor juízo, com melhor estrutura para o estabelecimento das ações de controle de biossegurança no Brasil.