Questões sobre bioética

em 1 January, 2013


Artigo de Maria Artemísia Arraes Hermans.

Nosso século XX merece um julgamento severo e um exame de consciência sobre o declínio dos valores cívicos e políticos. Em nome da Ética (moral) e ao impulso de grandes utopias políticas foram perpetrados crimes e injustiças.

A cegueira ideológica possibilitou considerar o mal absoluto bem absoluto — esse contrasenso fatal desregulou nossa época. Não podemos adiar a tarefa ou pelo menos a tentativa de restabelecer a legitimidade do ideal ético, que foi o centro tanto da meditação moral quanto da edificação política na Antigüidade.

Para os antigos, a felicidade do indivíduo crescia na mesma proporção que a polis. As pessoas conduziam a política de acordo com a justiça, que, no entanto, não deixava de ser uma questão pessoal — a procura da felicidade.

A questão: “como devo viver?” raramente se separava de outra: “como deve ser governada a cidade?” Aristóteles nos ensina e insiste, constantemente, na importância da virtude intelectual, da sabedoria política, da prudência para atingir a virtude moral, agindo conforme “a regra certa” no caso particular. A Ética é um estilo de vida, um “estado de caráter”, que visa o bem-viver ou a plenitude humana. Assim, rege, dirige e orienta o ser humano como indivíduo. A pessoa humana não é somente um ser ontológico consciente e livre, mas também um ser histórico, cultural, temporal. A Ética é mais ampla que a vida pessoal e social: ela abrange o universo, envolvendo todos os seres vivos. Trata de temas ecológicos que dizem respeito à totalidade da biosfera. Entretanto, é algo que pertence ao ser humano porque somente ele é capaz de raciocínio e vontade livre.

Faz parte da tentativa de construção do nosso século darmos chance à virtude e à verdade e inverter a atual meta: nem virtude e nem verdade, antes o poder e o dinheiro. O poder como acesso ao dinheiro é a própria negação da virtude cívica. Devemos condenar essa conduta que tem gerado a mais nefasta das doenças de que sofre o mundo contemporâneo — a corrupção. Em quase toda parte ela desnatura a missão do governo, alterando para pior o seu funcionamento. Em muitos países, o fim supremo do poder tem a força insidiosa para desencaminhar o exercício da responsabilidade política do seu destino original, que é o interesse dos governados e não o dos governantes, de seus parentes, amigos ou cúmplices. Infelizmente existem as catástrofes naturais, as crises pretensamente econômicas, as catástrofes ambientais, por causa da ação persistente e predatória dos homens, que, se dissecadas até as últimas raízes, têm, na realidade, causas políticas.

Por outro lado, se o espírito das leis está na base das Constituições democráticas, não teríamos negligenciado o fundo moral que torna possível aplicá-las? Montesquieu escreveu: Se, num governo popular as leis deixarem de serem executadas, o Estado está perdido e descreve esta decadência da virtude cívica nesta frase de uma veracidade e, infelizmente, para nós, de uma atualidade ululante: Éramos livres com as leis; queremos ser livres contra elas. Não é exagero lembrar a ideia justa que ele põe no centro dos seus princípios: todo direito é o inverso de um dever, já que todos os cidadãos são iguais perante a lei e a democracia — jamais estou sozinho na conquista de um novo direito, se o tenho é porque os outros também o têm. Atribuindo-o a todos os meus cidadãos, empenho-me em respeitá-lo diante deles tal como diante de mim, o que limita a liberdade de cada um. A ideia dessa correlação íntima entre o direito e o dever se tornou impopular nas democracias modernas. Nelas prevalece a ilusão de que cada um pode estender ao infinito o campo de suas liberdades, em conseqüência do que invade as liberdades alheias. O direito só existe para mim, jamais em meu detrimento. Ora, numa sociedade na qual nada é interditado, nada está garantido. A despeito dos esforços incessantes em destacar-se na injustiça, o ser humano jamais conseguiu livrar-se completamente de sua consciência moral. Mesmo bastante pisoteada por nossas ações, a noção do bem e do mal, da virtude e do vício, mergulha suas fortes raízes dentro de nós.

A ideia, contraditória e devastadora, de que poderemos atingir o bem fazendo o mal, ou, pelo menos, de que poderíamos lançar mão de meios antiéticos ou imorais a fim de guiar os povos para o bem, essa aberração nefasta e ingênua forneceu provas suficientes de sua falsidade ao longo da história contemporânea. E, a despeito de ter sido derrotada, em relação à dignidade humana, ela também perdeu terreno até mesmo quando fadada à vitória: na eficácia.

O filósofo francês Jean François Revel, no seu elogio à virtude, nos ensina: Seriam necessários tantos crimes para só engendrar epidemias de fome? Seriam necessários tantos ardis para aparecer nos cartazes da canalhice financeira? Seriam necessárias tantas mentiras para receber na derradeira e afinal sempre representada cena da tragédia as bofetadas da verdade? Melhor seria se aprendêssemos finalmente a preferir Montesquieu a Maquiavel. Nossa civilização democrática não se perpetuará e não se estenderá se o século XXI não for o século da virtude e da ética.

Da Bioética ao Biodireito

Pessini e Barchifontaine definem a Bioética como o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e princípios morais (PESSINI e BARCHIFONTAINE, 1996). Hubert Doucet acrescenta com precisão que a inadequação dos antigos princípios morais, a incapacidade de apreender as conquistas da Biologia molecular e a compreensão dos avanços médicos nos últimos vinte anos nos levaram a explorar novos caminhos de reflexão e de discussão sobre as escalas de valores éticos (DOUCET, 1993). Numa sociedade pluralista e secular, os valores éticos já não são objeto de consenso suficiente, mesmo em matérias fundamentais como o sentido da vida e a preservação da dignidade do homem. A Bioética tentou abrir novos caminhos para a discussão e faz um convite aos operadores da ciência, da cultura e do Direito para responderem às questões colocadas pelo progresso científico e tecnológico. Entretanto, está reservada ao Direito a missão de pontificar leis que cuidem desses progressos, desenvolvendo uma nova concepção de responsabilidade civil, independente da noção de culpa. O Direito deve intervir na aplicabilidade das técnicas de Engenharia Genética, quer para legitimá-las, quer para proibir ou regulamentar outras, pois todo progresso científico tem inquestionavelmente uma incidência jurídica. Como bem precisou Claire Neirinck (1994. p. 153-155), o Direito não pode ignorar os avanços da ciência e ainda deve integrá-los à sociedade como elemento útil à promoção dos valores que servem de base à civilização.

Lembrando Carson, podemos dizer que há uma silenciosa primavera ameaçando os direitos fundamentais do homem, sua dignidade, sua inviolabilidade e, por via de conseqüência, solapando a vida do planeta. A Bioética nasceu de todo esse questionamento, tão bem arrolado por Meulders Klein (1994. p. 23-78) em quatro categorias: a) a lógica do conhecimento e do poder; b) a lógica do proveito; c) a lógica da busca da felicidade; d) a lógica da utilidade. Klein nos conduz a novos dilemas éticos, econômicos e jurídicos — o que fazer na esteira de todas essas questões cruciais: como assegurar o domínio social da produção e a difusão e utilização das novas tecnologias de vida? De que forma o legislador pode organizar e controlar as relações humanas? Resta-nos indagar que normas jurídicas devem ser criadas diante da real e temerosa situação de avanço de técnicas cada vez mais sofisticadas de manipulação da vida. Juristas, cientistas, médicos, ao mesmo tempo em que anseiam por uma legislação, contraditoriamente temem o seu ordenamento positivo. Parece que as dificuldades são de duas ordens. A primeira é essencialmente de conteúdo, cuja normatização necessita de um consenso mínimo ao passar da já efetivada Bioética para um Biodireito a ser positivado. Essa formalização tem como risco a própria vida. É perigosa e factível a possibilidade de engendrar obstáculos ao seu pleno desenvolvimento. A segunda dificuldade é a forma de legislar, também problemática. Dever-se-ia legislar cada caso submetendo-o aos juízes? Qualquer que seja a solução, um fato é indiscutível: a norma jurídica deverá seguir os progressos científicos sempre atenta às mudanças sociais que os avanços tecnológicos propiciam. O vazio legislativo e a atual e perigosa liberdade que prevalece, sobretudo em matéria biomédica, conduzem o juiz a decidir questões particularmente graves em nome de uma moral hesitante e conforme um Direito incerto. Já não são suficientes as regulamentações alternativas que, embora éticas, permanecem ao sabor da escolha e da vontade. Talvez aí resida a raiz das hesitações, dos conflitos sobre que decisão tomar: devemos preencher esse vazio, passando da Bioética ao Biodireito, com a criação de normas cogentes? Não há uma unanimidade nessa direção, mas é possível visualizar em relação a determinados temas um consenso que tende à pacificação, quando se trata das garantias constitucionais e fundamentais do homem. O indiscutível, concluiu a cientista Meulders Klein, é que, se os debates estão longe de finalizar, a inação do Direito está em vias de desaparecer.

O que a ciência e a tecnologia nos reservam para o futuro

Há mais de um século, em 1895, nas vésperas do ano 1900, a revista americana Scientific American realizou um simpósio para discutir o que se esperava da ciência e da tecnologia no novo século. Em 1995, um século após, a Scientific American promoveu uma nova reunião onde especialistas tentaram prever o que vai acontecer no século XXI em ciência e tecnologia. Os resultados são interessantes, mas claramente refletem os problemas que caracterizaram o simpósio de 1895. A exceção são as previsões na área da Biologia molecular, na qual poderão ocorrer desenvolvimentos revolucionários na produção de alimentos com a presença de OMG´s (organismos geneticamente modificados), a produção in vitro de órgãos humanos artificiais e a manipulação genética, seja para prevenir doenças, curá-las, estender a vida humana ou programar as características das gerações futuras. O conhecimento minucioso do código genético dos seres vivos permite visualizar esses processos, bem como os sérios problemas éticos e sociais que eles vão gerar. É nessa área que provavelmente ocorrerão, no século XXI, grandes desenvolvimentos e mudanças no comportamento humano.

O que já está acontecendo

De tanto perseguir, vasculhar a intimidade das células, os biólogos descobriram que todos os habitantes do planeta possuem a mesma química orgânica, o mesmo patrimônio herdado de sua evolução. Cada criatura possui a sua lista de instruções e, embora essas listas sejam diferentes umas das outras, são formuladas numa linguagem basicamente similar. A grande lição da ciência moderna é que a vida é uma só, não importa o tipo de organismo, se o homem, o vegetal, a bactéria, a vida usa os mesmos tipos de moléculas, as mesmas reações químicas e as mesmas estruturas fundamentais.

A enorme diversidade de seres vivos que habitam o planeta é resultado da maneira como os componentes fundamentais do corpo se organizam. A organização de cada ser vivo é determinada por uma “instrução” escrita em código nos genes recebidos dos pais. De acordo com essas instruções, presentes nas moléculas de DNA (ácido desoxirribonucléico) que formam os cromossomos, um ser vivo transforma matéria e energia do mundo não-vivo em componentes do seu corpo, crescendo e se reproduzindo. A reprodução biológica não é apenas a produção de cópias idênticas aos pais; os descendentes podem apresentar características novas que surgem como resultados ou modificações nas instruções genéticas. São as chamadas mutações ou transmissões equivocadas das instruções recebidas dos pais. Em cada geração surgem indivíduos ligeiramente diferentes um dos outros e a natureza seleciona aqueles que melhor se adaptam às condições ambientais; esses serão os pais da geração seguinte. É assim que a vida evolui. Todo ser vivo representa, portanto, a execução de um projeto genético, construído nos últimos 3,5 bilhões de anos, pela seleção natural. O objetivo de tal projeto parece não ser outro senão a sua própria perpetuação. Nesse sentido, vida e reprodução são indissociáveis.

Quando a estrutura do DNA foi elucidada por Watson e Crick, em 1953, esta descoberta pareceu importante apenas para os cientistas diretamente envolvidos no problema. Mesmo esses cientistas não conseguiram vislumbrar, em princípio, a revolução que ocorreria algumas décadas depois. Da mesma forma, hoje não é possível prever os limites dessa tecnologia. Ela oferece tamanho potencial que se torna inócua qualquer ação no sentido de frear o seu desenvolvimento. O megaprojeto do Genoma Humano prossegue com surpreendentes achados. Além de estabelecer a seqüência das 3 milhões de letras do DNA humano nesses próximos 5 anos, os cientistas estudam paralelamente as variações dessas letras (nucleotídeos) do DNA, que tornam cada pessoa única. São os chamados SNIPs — sigla inglesa de Single Nucleotide Polymorphisms. Esses polimorfismos são os determinantes genéticos da saúde e da doença. A cada novo gene identificado, uma nova variação surgirá. Estima-se que até agora se conheça 1% das variações dos genes. Entretanto, muitas características individuais são multifatoriais, ou seja, conseqüência de uma série de variações. Quando o gene possui uma variação, não produz a proteína certa, que faz parte da seqüência do DNA. Se uma proteína está errada ou não foi produzida adequadamente as proteínas vizinhas serão afetadas, provocando uma espécie de “efeito dominó″. O polimorfismo interage de alguma maneira com o gene, provocando uma diferença no quadro clínico, que será usado para identificar as causas e doenças provocadas por alteração genética. As indústrias farmacêuticas estão investindo nesse mapeamento de variações, pois, de posse dos resultados, seria possível reduzir consideravelmente os efeitos adversos das drogas. Por outro lado, a recente teoria de que seria possível decifrar as doenças causadas por múltiplos genes despertou considerável interesse das grandes universidades dos Estados Unidos e da Europa, cada vez envolvendo maior número de cientistas. Eles buscam a identificação de uma quantidade suficiente de SNIPs ao longo da cadeia de DNA, de modo que haja uma chance razoável de se chegar ao genes causadores de moléstias.

Toda essa surpreendente leitura das fronteiras da vida, com nítidas promessas de melhoria da qualidade da vida, tem o seu lado obscuro, que pode se tornar uma ameaça à harmonia da natureza. Tudo depende da virtude, da ética do profissional que decide a condução da pesquisa ou a escolha do experimento no solitário espaço de sua inviolável intimidade.

O que podemos e devemos fazer é envolver a sociedade nessa aventura para que não se pratiquem atentados contra a vida, as liberdades individuais e a inviolabilidade da pessoa humana.

Para finalizar, lembramos o nosso filósofo e jurista maior, Miguel Reale, para quem os valores da vida privada e da vida pública se compõem de conformidade com o princípio da complementariedade, que, não por acaso, preside também as realizações das ciências naturais e da tecnologia. O resultado de toda essa reflexão ou pressupostos foi postulado por Benedetto Croce, sendo efetivamente a façanha da liberdade, fruto da formação do homem, já agora exigência perene que o acompanha ao longo de toda sua existência.

Saibamos viver neste limiar do segundo milênio, relacionando-nos dia a dia tanto para enriquecimento interior como para nos tornarmos aptos a viver com a virtude da contemporaneidade.

 Maria Artemísia Arraes Hermans, professora Titular da Universidade de Brasília (aposentada); Professora Catedrática da Universidade Federal do Ceará (aposentada); Bióloga; Advogada; e Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/DF.

Texto publicado originalmente na Revista CEJ, V. 3 n. 8 mai./ago. 1999, e cedido gentilmente pela autora ao Observatório Eco.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOUCET, Hubert. L´ethique biomédicale. Le Monde, 18 nov. 1993.

MEULDERS KLEIN, Marie Thérèse. La production des normes en matiére bioéthique. In: DE LA BIOÉTHIQUE au bio-droit. Paris: L.G.D.J. 1994, p. 23-78.

NEIRINCK, Claire. Le droit à la recherche de ses catégories. In: De la bioétique au bio-droit. Paris: L.G.D.J. 1994, p. 153-155.

PESSINI, Léo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Os problemas atuais da Bioética. 3 ed. São Paulo: Loyola, 1996.




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