Povos Indígenas e o setor elétrico

em 31 July, 2012


Povos Indígenas: ainda em busca da desejada segurança jurídica

Artigo de Erika Breyer.

Ao final das últimas semanas, diversas notícias publicadas na imprensa destacavam, de modo geral, os possíveis efeitos que a Portaria nº 303/2012 expedida pela Advocacia Geral da União (AGU), e publicada no último dia 17/07/2012, apresentaria em relação à tutela dos direitos indígenas constitucionalmente protegidos e a possibilidade de expansão de novos empreendimentos de energia e infraestrutura sobre as áreas tradicionalmente ocupadas por estes povos. Em meio àquelas, posições manifestadas oficialmente por órgãos da própria Administração em protesto a referida medida, já suspensa até 24/09/2012, já conotam o ambiente de contradição e insegurança que o tema envolve até os dias atuais. Com efeito, a fim de se esclarecer o bojo jurídico por trás das controvérsias, bem como concedera cautela necessária à percepção dos reais impactos que a medida poderá representar, algumas considerações merecem ser abordadas a fim de se evitar os imperativos divulgados até o momento.

A Portaria AGU nº 303/2012, assinada pelo Advogado Geral da União, Sr. Luís Inácio Adams, teve como objeto uniformizar as orientações jurídicas a serem seguidas pela Administração Pública Federal nos processos administrativos visando à implementação de empreendimentos de energia e projetos de infraestrutura em terras indígenas. Para tanto, utilizando-se como referência as dezenove condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no julgamento da Petição nº 3.388/RR, a mencionada portaria estabeleceu contornos às salvaguardas indígenas, ao delinear, de modo abstrato e genérico, as hipóteses de incidência e exceção à aplicação do conceito de usufruto exclusivo estabelecido na Constituição.

Isto porque, a Constituição Federal em seu art. 231, reconhece aos índios uma série direitos tais como sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, estabelecendo, em suas seguranças, a garantia à posse permanente sobre as terras ocupadas e o usufruto exclusivo sobre as riquezas do solo, rios e lagos existentes.

Ocorre que, há muito se debate sobre quais riquezas estaria a Constituição Federal se referindo e, logo, salvaguardando à exclusividade de exploração dos índios. Isto é, indaga-se se dentre a universalidade de recursos e potenciais inerentes aos bens naturais mencionados, existiriam certas utilidades excluídas desta proteção constitucional e, portanto, passíveis de exploração por não-índios.

A própria Constituição apresenta resposta ao citado questionamento quando, sistematicamente, adota a teoria dual da propriedade, e estabelece que os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, reservando à União o domínio sobre os mesmos, na forma dos artigos 176, caput c/c 20, incisos VIII e IX. Nesta medida, de modo a integrar e conferir a coesão e unidade essenciais à interpretação constitucional, ao dispor sobre os direitos indígenas, o art. 231, §3º da Constituição ressalvou do escopo e alcance desses direitos o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, e a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, desde que autorizados pelo Congresso Nacional e garantida a consulta às comunidades afetadas, bem como sua participação no resultado do produto da lavra.

A ressalva constitucional prevista ao aproveitamento hidroelétrico e à mineração justifica-se pela rigidez locacional a que tais atividades econômicas estão atreladas e, logo, diferentemente de outros empreendimentos, a exploração de suas potencialidades depende invariavelmente das formações geológicas e hidrológicas existentes. Dessa forma, não compete ao Estado ou ao interessado escolher o local onde a atividade será realizada e face à importância fundamental que estas atividades representam à soberania nacional e funcionamento dos demais setores do país, a Constituição privilegia esses empreendimentos, estabelecendo-os como verdadeiras hipóteses especiais afora do conceito de direitos indígenas, não devendo os potenciais energéticos e minerais serem entendidos como uma flexibilização dos direitos dos índios como se a estes integrassem.

Na verdade, pode-se entender que o que a Constituição guardaria sob o manto do usufruto exclusivo dos índios diz respeito àqueles bens proveitos à subsistência e manutenção alimentar, como vegetais, frutos, água, peixes e animais em geral e essenciais à preservação de sua cultura e formas de organização. Entretanto, mesmos tais direitos, bem como a posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas, podem ser flexibilizados, contudo, apenas em caráter excepcional – e para outras atividades que não os potenciais hidroelétricos e minerais – quando nas hipóteses de relevante interesse público, assim disposto em lei complementar.

Diante do cenário constitucional, a Portaria AGU nº 303/2012, ao estabelecer uma preponderância geral de certas atividades sobre os interesses indígenas, em nome da defesa nacional, além de não suprir a necessidade de regulamentação do art. 231 da Constituição Federal por Lei Ordinária ou Complementar, conforme o caso, poderá prejudicar o exercício de ponderações de valores, eventualmente necessários à resolução de casos específicos em âmbito administrativo. Isto porque, cabe ressaltar, que a portaria representa apenas uma uniformização de intepretação e vinculante apenas no âmbito das procuradorias federais da Administração Pública. Nesse âmbito, nem a citada portaria, ou mesmo a decisão do Supremo Tribunal Federal na Pet. 3.388/RR, que fundamentou o posicionamento da AGU, vinculam o Poder Judiciário, de modo que, outros casos baseados nos preceitos da Portaria poderão eventualmente, serem questionados judicialmente, conforme suas particularidades, principalmente considerando a existência de outros diplomas legais como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.

A par da polêmica suscitada na mídia e, sustentada por órgãos da própria Administração, culminando inclusive com a ulterior postergação por parte da AGU da eficácia da Portaria nº 303 a partir do dia 24/09/2012, vale lembrar que o entendimento que se pretendia consolidar não é novo. Desde 28/10/2011, o PARECER nº 153/2010/DENOR/CGU/AGU, que embasou a edição da portaria em comento, já se encontrava aprovado pelo Ministro da Justiça, sendo obrigatória sua observância pela FUNAI. Contudo, a partir da edição da Portaria AGU nº 303/2012, como afirmado, as procuradorias federais de todo Poder Executivo Federal passaram a estar vinculadas a este posicionamento, estendendo-se tal entendimento, por exemplo, às procuradorias do ICMBio e IBAMA.

A contradição interna demonstrada pela Administração sobre o tema confirma o grave ambiente de insegurança jurídica que permeia a exploração de atividades em terras indígenas no Brasil. Com efeito, até a edição de Lei Ordinária e Complementar que estabeleçam critérios e parâmetros objetivos a determinar os procedimentos necessários à execução de tais empreendimentos, de modo a suprir, respectivamente, a necessidade de regulamentação da exploração dos potenciais hidrelétricos e minerais, exigida no art. 231, § 3º e das hipóteses de relevante interesse público, mencionadas no § 6º do mesmo artigo, os atuais problemas enfrentados por índios e setor produtivo permanecerão sob o tratamento caso a caso e análise subjetiva do governo, gerando desestímulos a novos investimentos, além de onerar a efetiva proteção aos povos indígenas constitucionalmente garantida.

Erika Breyer, sócia do escritório Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados Associados, responsável pela área de Energia e Sustentabilidade.




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