Fauna brasileira precisa de melhor proteção jurídica

em 1 May, 2012


Artigo de Vladimir Passos de Freitas.

A Constituição de 1988, acompanhando uma tendência mundial, dedicou vários dispositivos à proteção do meio ambiente. O principal deles é o artigo 225, hoje constantemente citado em processos administrativos e ações judiciais. O caput do artigo 225 é antropocêntrico. Ao mencionar que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, ele está a se referir a nós, seres humanos. Reproduz séculos de civilização cristã, já que a Bíblia coloca-nos como feitos à imagem e semelhança do Senhor (Gênesis, 1, 26-27). 

Na nossa visão antropocêntrica, por certo, julgamo-nos superiores aos outros seres que nos acompanham nesta instigante passagem pela Terra, que é a vida. Mas esta  nossa visão não é a de todos os seres humanos.

Em 1854 o Cacique Seatle dirigiu-se ao presidente dos Estados Unidos, rejeitando proposta de compra das terras daqueles indígenas, da seguinte forma:  “Nós somos uma parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. As rochas escarpadas, o aroma das pradarias, o ímpeto dos nossos cavalos e o homem – todos são da mesma família. Assim, o grande chefe de Washington, mandando dizer que quer comprar nossa terra, está pedindo demais a nós índios”.

Atenuando a posição antropocêntrica extrema, o parágrafo 1º do artigo 225 dispõe que: “Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. 

Este  inciso põe-se de acordo com a proteção existente desde da época da Colônia. As Ordenações Manuelinas, no Livro V, título LXXXIII, proibiam a caça de perdizes, lebres e coelhos com redes, fios ou instrumentos capazes de causar dor e sofrimento.  Em 1934, o Decreto 24.646 instituiu o “Estatuto dos Animais”. Em 1967 tivemos a Lei 5.197, que proibiu o comércio de espécimes da fauna silvestre (exceto de criadouro autorizado), determinou a edição de lista de espécies ameaçadas de extinção, regulamentou as pesquisas científicas e criou contravenções penais.

Em 1988 a Lei 7.653 elevou as sanções. Por exemplo, o comércio ilegal passou a ser sancionado com 2 a 5 anos de reclusão. Os crimes tornaram-se inafiançáveis. Do rigor da Lei 7.653 passamos à inoperância da 9.605/98, que, ao tratar dos crimes de morte, caça, venda, transporte e outras condutas contra a fauna (artigo 29), atribuiu-lhes a simbólica pena de 6 meses a 1 ano de detenção e multa.

O resultado desta branda sanção, imposta pelo Congresso (não pela Comissão que elaborou o projeto de lei), foi reduzir as ações penais contra a fauna a um nada jurídico. Os ataques à fauna ficaram desprotegidos.

A consequência é de fácil constatação. As penas contra a fauna não possuem jurisprudência. Resolvem-se em transações, muitas vezes sem nenhum caráter ambiental (por exemplo, entrega de cestas básicas), na prescrição ou em multas, que ninguém paga.

Exagero? Não. Consulta sob os títulos “crimes contra a fauna”, “morte de animal silvestre” ou “comércio de espécies da fauna silvestre” feita às Turmas Recursais do  TJSC, sabidamente eficientes, revela a inexistência de precedentes.

Na parte civil dá-se o mesmo. As ações civis públicas relacionadas com a fauna saíram da esfera de interesse do Direito Ambiental. Elas existem, mas são poucas. Consulta ao site do STJ, sabidamente atuante na área ambiental, feita sob o título “fauna e ação civil pública”, revela apenas dois precedentes. Um deles de caráter administrativo e o outro sem relação com a busca da pesquisa.

Disto se conclui que as preocupações vêm se tornando cada vez mais antropocêntricas. A dignidade da pessoa humana é invocada a todo momento, de modo a justificar teses jurídicas que vão do Direito Interplanetário ao Esportivo. E os espécimes da fauna veem-se cada vez mais desprotegidos.

Na verdade, como afirma o promotor Laerte Levai, “ainda existe preconceito quando se fala em direito dos animais. Muita gente, da área jurídica inclusive, não leva a questão a sério”. Paradoxalmente, o comportamento dos animais mostra como suas reações aproximam-se dos humanos, o quanto deles estamos próximos, ainda que disto discordemos.

Vejamos dois exemplos: a cadela Lady, abandonada em um cemitério de Maringá (PR), pariu oito filhotes e com eles passou a viver em um túmulo aberto no cemitério. Todo dia saía à caça de alimentos para seus descendentes. Aos que passavam perto de sua improvisada moradia, rosnava. Na mais absoluta legítima defesa da prole, chegou a morder a perna de uma mulher que passava no local.  Uma reação instintiva, absolutamente compreensível.

Os chipanzés são os que mais se aproximam dos humanos. Estudos científicos mostram que, para alimentar-se, quebram nozes e usam graveto para promover aberturas que lhes permitam retirar de troncos de árvores cupins e mel. Segundo Julia Layton, os professores Jill Pruetz, da Universidade Estadual do Iowa, e Paco Bertolani, da Universidade de Cambridge, registraram em pesquisa de março de 2005 a julho de 2006, que chimpanzés em Fongoli, Senegal, empregavam ferramentas para matar animais que usavam como comida.

Pois bem, em que pese fazermos todos parte de um mesmo planeta, termos aspirações semelhantes, ainda que racionais (humanos) e instintivas (animais), estamos abandonando a fauna à sua própria sorte. Ela está ficando fora do Direito, à margem de sua evolução, tudo isto se refletindo na ausência de jurisprudência e de trabalhos acadêmicos.

Na discussão da reforma do Código Florestal, que ocupou a mídia intensamente nos últimos dias, viu-se o uso de todos os tipos de argumentos, a favor ou contra. Só não se ouviu uma voz a defender os animais, que serão prejudicados pela diminuição das áreas de preservação permanente e dos corredores ecológicos.

Pressionados pela urbanização do campo, por conta de loteamentos de luxo que prometem uma vida ecológica, pelo aumento da fronteira agrícola e pela construção de barragens, os animais sairão de seus habitats à procura de alimentos para si e para a prole. E serão impiedosamente mortos por proprietários rurais.

É preciso mais equilíbrio nesta relação. Os humanos precisam conscientizar-se dos direito dos animais. As ONGs precisam saber manejar mais e melhor o arsenal legislativo que está à sua disposição. O Ministério Público precisa elevar o nível de atenção ao problema. Os acadêmicos dedicarem-se à matéria em seus trabalhos. E o Judiciário, sair do confortável imobilismo e especializar Câmaras ou Varas Ambientais, a fim de que haja maior efetividade nos julgamentos.

Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.

(As opiniões dos artigos publicados no site Observatório Eco são de responsabilidade de seus autores.)

Artigo publicado no Conjur.




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