Para advogado parecer da AGU sobre áreas rurais é inconstitucional
Roseli Ribeiro em 19 September, 2010
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Em final de agosto, passou a vigorar um novo entendimento jurídico que limita a aquisição de áreas rurais brasileiras por estrangeiros e por empresas brasileiras controladas por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras domiciliadas no exterior.
Trata-se do parecer da Consultoria Geral da União (Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ) aprovado pela AGU (Advocacia Geral da União), pelo Presidente da República e publicado no Diário Oficial da União.
Para o advogado Ricardo Cerqueira Leite, sócio-fundador do escritório Cerqueira Leite Advogados Associados, este parecer traz uma nova interpretação da lei 5.709/71, e em seu entendimento “é inconstitucional” por várias razões, entre elas, o especialista destaca que “a lei 5.709/71 não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988”, por essa razão estaria revogada. “Uma vez revogada, seria necessário que o Congresso Nacional aprovasse novo texto legal para disciplinar a matéria”, completa.
As incertezas em torno deste parecer são inúmeras e sua validade deve ser questionada judicialmente. Cerqueira Leite observa que as “restrições não atingem simplesmente empresas estrangeiras e sim empresas brasileiras, devidamente constituídas no território brasileiro”. Para o advogado, “o fato deste controle ser exercido por empresas ou pessoas físicas estrangeiras não torna a pessoa jurídica um ente alienígena”.
Ricardo Cerqueira Leite atua na área de fusões e aquisições, investimento estrangeiro, e petróleo. Além de advogado é também administrador de empresas formado pela PUC-Campinas, e Mestre em Direito Comercial Internacional (LL.M) pela Universidade da Califórnia.
Para o especialista, a limitação ao capital estrangeiro é matéria que demanda um debate maior e que deve ser analisada no Congresso Nacional. Segundo Cerqueira Leite, a restrição ao capital estrangeiro poderá inibir investimentos no agribusiness e “poderemos encontrar óbices para atingir o potencial produtivo do país”. Veja a entrevista que Ricardo Cerqueira Leite concedeu exclusivamente ao Observatório Eco.
Observatório Eco: Segundo dados do Incra, estrangeiros (pessoas físicas e jurídicas) são donos de 4,4 milhões de hectares de terras brasileiras. Em sua opinião, esses números, justificam a preocupação da AGU em limitar a aquisição de terras por estrangeiros? Por quê?
Ricardo Cerqueira Leite: Entendo que os números apresentados não podem ser invocados para justificar as limitações à aquisição de terras por estrangeiros, ainda mais quando estabelecidas por meio de revisão de parecer da AGU.
Primeiramente, porque tais restrições não atingem simplesmente empresas estrangeiras e sim empresas brasileiras, devidamente constituídas no território brasileiro. O fato deste controle ser exercido por empresas ou pessoas físicas estrangeiras não torna a pessoa jurídica um ente alienígena.
Por outro lado, a limitação ao capital estrangeiro é matéria que demanda maior debate, ainda mais para um país que necessita tanto de investimento como o Brasil e que tem procurado melhorar o seu espaço na comunidade internacional.
A instituição que tem legitimidade para debater este tema é o Congresso Nacional e não a Advocacia Geral da União. Ademais, o discurso de justificativa das limitações a partir dos dados do INCRA (4,4 milhões de hectares em mãos de estrangeiros) é um discurso no mínimo incompleto, pois essa área é inferior a 1% do território nacional. A mensagem subliminar ou mesmo expressa de “estão tomando conta do território”, não é verdade, pois as proprietárias são empresas brasileiras e podem ser controladas por meio de diversos outros mecanismos, sem necessariamente estabelecer restrições ao capital.
Observatório Eco: Deixar de restringir essas aquisições não significa um risco à soberania territorial e também à soberania alimentar?
Ricardo Cerqueira Leite: Não partilho da idéia que aquisições de imóveis rurais por grupos estrangeiros colocam em risco seja a soberania territorial ou alimentar.
Inicialmente, porque as empresas adquirentes, em sua grande maioria, são brasileiras e, portanto, se submetem à legislação brasileira. Ademais, o Brasil é um país de dimensão continental, com muita terra a ser explorada. Entendo que a restrição ao capital estrangeiro poderá inibir investimentos no agribusiness e poderemos encontrar óbices para atingir o potencial produtivo do país.
A idéia de que aquisições de imóveis rurais pelo capital estrangeiro podem representar risco à soberania nacional é uma idéia com resquícios da ditadura militar. De fato, a lei 5.709/71, ora eventualmente em vigor, foi promulgada no auge desse regime. O signatário foi o General Emílio Garrastazu Médici.
Naquela época, o cenário econômico, os mecanismos de controle das atividades empresariais no país, o controle do fluxo de valores entre países eram totalmente diversos da atual realidade, de maneira que se grupos estrangeiros decidissem comprar mais que 50 módulos rurais, deter mais que 25% de um Município, poder-se-ia vislumbrar nessas aquisições a estratégia de dominação territorial e, por conseguinte, ofensa à soberania nacional. Em hipótese alguma é o cenário atual, em que o Governo possui diversos mecanismos legais para controlar as empresas brasileiras, ainda que controladas por capital estrangeiro.
Por fim, se houver qualquer sinalização que a produção local de alimentos está sendo direcionada para outros povos em detrimento do povo brasileiro, há meios legais para evitar este escoamento indevido.
Observatório Eco: O parecer da AGU tem efeito de lei? Ou seja, já deve ser acolhido com força vinculante por estrangeiros que queiram adquirir áreas rurais em terras brasileiras a partir de agora?
Ricardo Cerqueira Leite: A parecer da AGU não tem o efeito de lei. O que ocorre é que a lei complementar nº 73/93 dispõe que os pareceres da AGU têm efeito vinculante para os órgãos da Administração Federal. Para os Ministérios da República, dentre eles o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o parecer tem efeito vinculante.
Em termos práticos, porém, entendo que se alguma empresa brasileira, controlada por capital estrangeiro, tiver o intento de adquirir áreas rurais em inobservância a tais restrições, caso o cartório de notas se negue a lavrar a escritura, ou mesmo o cartório de registro de imóveis se negue a registrá-la, caberão medidas administrativas como suscitação de dúvida e mandado de segurança.
Observatório Eco: O avanço de empresas estrangeiras no país adquirindo terras para a produção e exportação de alimento para seus países de origem deve ser tratado de que forma pelo governo brasileiro?
Ricardo Cerqueira Leite: É importante frisar, mais uma vez, que as empresas são brasileiras e que a restrição é ao capital estrangeiro. Enquanto empresas brasileiras, não se questiona que devem se submeter ao ordenamento jurídico brasileiro.
Nesta linha, em caso de ameaça ao abastecimento local, o governo brasileiro poderia, por exemplo, aumentar a alíquota de impostos de exportação para incentivar a distribuição no território brasileiro, alterar os critérios de apuração do ITR (Imposto Territorial Rural) de maneira a tributar ainda mais áreas maiores, conceder incentivos fiscais para quem distribui no território brasileiro, dentre outras medidas.
Observatório Eco: Na prática de que forma deve ser acolhido o referido parecer pelos cartórios que lavram as escrituras e os cartórios de registro de imóveis?
Ricardo Cerqueira Leite: Na prática os cartórios deverão cumprir a determinação do parecer da AGU e exigir os documentos e limitações impostas nos artigos 9º a 11º da Lei 5.709/71, assim como, os Cartórios de Registros de Imóveis deverão cumprir a determinação do artigo 11 da citada Lei, ou seja, informar trimestralmente à Corregedoria da Justiça dos Estados a que estiverem subordinados e ao Ministério da Agricultura, a relação das aquisições de áreas rurais por pessoas estrangeiras, sob pena de perderem seus cargos.
Observatório Eco: De acordo com o parecer da AGU, as restrições determinam ainda que a soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras ou empresas brasileiras controladas por estrangeiros não poderá ultrapassar 25% da superfície do município. Por outro lado, determinada área pode ser adquirida em nome de diversas pessoas sob a ordem de um único interessado e ultrapassar o percentual estabelecido? O Parecer tem mecanismos para atuar contra esse tipo de fraude?
Ricardo Cerqueira Leite: O texto do parecer não elenca hipóteses que poderiam ser consideradas fraudes. A hipótese citada poderia ser uma maneira de burlar as restrições, além de muitas outras possíveis.
De fato, o Congresso Nacional ao debater este assunto, deverá estabelecer medidas para dar eficácia à possível lei, pois caso contrário, haverá diversas brechas legais. Ainda que se admita efeito de lei ao parecer, em cujo cenário poder-se-ia sustentar eventual fraude, o ordenamento jurídico possui elementos como a vedação ao abuso de forma e a desconsideração da personalidade jurídica, cuja combinação permitiria punir eventuais estratégias com o intuito de restringir o capital, se estabelecidas validamente.
Observatório Eco: Empresas estrangeiras no país, cujo montante já ultrapassa o percentual de 25% da área de um município devem se preocupar com o Parecer da AGU?
Ricardo Cerqueira Leite: Do ponto de vista jurídico, não vislumbro riscos para tais aquisições, ainda que representem percentual superior a 25% de um Município, por força do princípio constitucional do ato jurídico perfeito.
No entanto, há preocupações, pois se o entendimento que a lei 5.709/71 não foi revogada prevalecer, poder-se-ia argumentar que tais aquisições foram feitas ao arrepio da lei e, portanto, nulas de pleno direito.
Em outros termos, se a lei 5.709/71 nunca não foi revogada, ela está em vigor desde sua promulgação, de tal sorte que todos os atos praticados durante sua vigência deveriam ter se submetido ao seu texto legal, de onde extraímos as restrições.
Observatório Eco: Esse Parecer é inconstitucional? Por quê?
Ricardo Cerqueira Leite: Restringir o capital estrangeiro por meio de revisão de um parecer da AGU, cujo efeito foi reconhecer a vigência da Lei 5.709/71 parece-me inconstitucional, pelos seguintes motivos.
A Lei 5.709/71 não foi recepcionada pela Constituição de 1988, portanto, referida lei foi revogada. Uma vez revogada, seria necessário que o Congresso Nacional aprovasse novo texto legal para disciplinar a matéria.
O reconhecimento da revogação da lei é imperioso, pois caso contrário, conforme já disse, haveria diversas aquisições que não teriam observado tais restrições, o que determinaria a declaração de nulidade. Não seria razoável que uma empresa brasileira se deparasse com iminente declaração de nulidade se desde 1988 há o cediço entendimento, inclusive manifestado pela AGU em duas oportunidades (1994 e 1998) sobre a revogação da referida lei. Se tais transações não podem ser anuladas, como se espera, o fundamento a amparar a manutenção é o da revogação da Lei 5.709/71, ainda que tácita.
O Estado Brasileiro é regido pelo princípio da legalidade, que assim preceitua: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude e lei. Portanto, o parecer da AGU não poderia ter o efeito de restringir o capital estrangeiro uma vez que não é lei.
O artigo 190 da Constituição Federal estabelece que a lei regule a aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira. Por outro lado, uma vez devidamente constituída no território brasileiro, a pessoa jurídica passa a ser considerada brasileira. Portanto, para que seja possível restringir empresas brasileiras com controle estrangeiro, se faz necessária alteração no texto constitucional.
Ainda na linha do pensamento que tais restrições deveriam ser estabelecidas por meio da Constituição Federal, cumpre destacar que a Carta Magna estabelece restrições a determinadas atividades econômicas ao dispor, por exemplo, no artigo 222, que a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão é privativa de brasileiros, que deverão controlar pelo menos 70% do capital votante. Assim, tendo em vista que a restrição ao capital estrangeiro em determinadas atividades econômicas foi disciplinada pela Constituição, a restrição para outras atividades econômicas, como o agribusiness, operadas por empresas brasileiras, deveriam seguir a mesma linha, o que demandaria emenda constitucional.
Licínia Stevanato, 13 anos atrás
Em nenhum momento, desde sua vigência, houve a revogação da Lei 5.709/71, que sempre foi considerada recepcionada pela Constituição Federal de 1988. O que se discute no parecer da Advocacia Geral da União é tão somente a recepção do §1º, do art. 1º, da mencionada Lei 5.709/71.